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sábado, 19 de maio de 2012

ALCÂNTARA MACHADO E SUAS OBRAS



Brás, Bexiga e Barra Funda: O foco na sociedade italiana



Interessado pela vida na cidade, o universo retratado por Alcântara Machado é o espaço urbano de São Paulo, em especial dos bairros dos imigrantes italianos – Brás, Bexiga, Barra Funda e Mooca – embora não faltem citações sobre os pontos considerados ‘nobres’ e ‘centrais’ da cidade – como a Avenida Angélica, Higienópolis, Paulista, Rua Barão de Itapetininga e Largo Santa Cecília. No conto Carmela, a personagem passeia pela cidade e conduz o leitor ao reconhecimento de alguns desses lugares com indicações dos nomes e, às vezes, até o número da casa ou da loja.
 Além do reconhecimento geográfico da cidade um conjunto de aspectos humanos, morais, sociais, culturais e lingüísticos é trazido ora por um narrador observador, que anota suas impressões a uma certa distância, como fotógrafo de situações; ora por um narrador onisciente, que penetra superficialmente no íntimo dos personagens que formavam a comunidade ítalo-paulista. Totalmente identificado com a alma popular, Alcântara Machado traz para sua obra Brás, Bexiga e Barra Funda, não os emigrantes italianos ricos da avenida Paulista, fazendeiros de café, senão os ítalo-paulistas dos arrebaldes pobres, dos bairros operários, flagrados na simplicidade do seu cotidiano, na sua vida íntima, na luta por sua integração social.

Em Brás, Bexiga e Barra Funda, Alcântara Machado utiliza a língua portuguesa tal como é praticada nos bairros ítalo-paulistas. Mas quando se compara a língua macarrônica de um Juó-Bananère com a de Alcântara Machado constata-se uma notável diferença entre a reprodução caricatural das deformações fonéticas, no primeiro, e o recurso comedido às misturas de vocabulário e erros de construção gramatical no segundo. [...] De fato, Alcântara Machado não tem outro programa: ‘Construir tudo. Até a língua. Principalmente a língua’.”.

Alcântara Machado dispôs-se a homenagear a italianidade lingüística e comportamental que marcava o dinamismo da cidade em expansão, recriando-a na linguagem certeira e ligeira das notícias de jornal. Embora elogiasse as deformações da sintaxe e da prosódia utilizadas por Juó Bananère (pseudônimo de Alexandre Marcondes Machado, um dos pioneiros da crônica da imigração na imprensa paulistana), o autor não o imitava, mas integrava vocábulos e estruturas frasais da língua italiana ao Português coloquial dos personagens preservando a brasilidade do narrador:

“Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.
-            Ia dimenticando de dizer. O meu filho fará o gerente da sociedade... Sob a minha direção, se capisce.
-            Sei, sei... O seu filho?
-            Si. O Adriano. O doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?”

Outra característica fundamental no livro é a constatação do progresso metropolitano através da referência às máquinas, símbolos do progresso na década de 20. Neste contexto são extremamente importantes os veículos: bondes, coches, automóveis, identificados pelas marcas: Ford, Buick, Lancia, Hudson. Esses elementos são os responsáveis pelo desencadeamento dos conflitos nos contos Gaetaninho e O Monstro de Rodas, também funcionam como elementos caracterizadores de poder econômico em A Sociedade e Carmela ou de espaços como em Lisetta e Corinthians (2) vs. Palestra (1).
No conto Tiro de Guerra n. º 35, vários dados se atrelam o bonde: é através dele que descobrimos a condição econômica do cobrador (protagonista do conto), reconhecemos o espaço da cidade graças à linha do bonde. Verifica-se também um dado concreto a respeito da cultura popular quando a ausência do cobrador inspira a seção de fofocas amorosas da revista A Cigarra. Em outra passagem, o cobrador deixa o emprego na companhia cujo nome homenageava o escritor italiano Gabrielle d’Annunzio para trabalhar numa similar que homenageava Rui Barbosa, marca evidente do nacionalismo jacobino presente no conto.
As descrições dos ambientes espaciais – tanto exteriores quanto interiores em Brás, Bexiga e Barra Funda são econômicas e por vezes, raras. Em Amor e Sangue, o narrador faz uma descrição do ambiente comparando-o ao personagem de Nicolino; adianta registra também a imagem dos bondes e o acúmulo de pessoas que ocupavam esses bondes:
             
(...) não adiantava que o céu estivesse azul porque a alma de Nicolino estava negra (...)”
O tempo na narrativa é cronológico e bastante breve. As ações se passam em intervalos de horas, dias ou semanas em razão dos próprios enredos. Assim em O Monstro das Rodas,o relato não ultrapassa o período compreendido entre o velório e o enterro de uma criança, em Corinthians (2)vs. Palestra (1), o enredo se inicia em plena partida de futebol para encerrar-se nas comemorações da torcida campeã. Já no conto Carmela, a protagonista é convidada, em um fim de tarde, para um passeio de carro; no dia seguinte aceita o convite, mas leva uma amiga junto, enquanto que no passeio do domingo já não leva mais a acompanhante.
Durante a descrição do tempo das narrativas, o autor utiliza o recurso da síntese para marcar a passagem do tempo e das ações. Esses saltos são traduzidos graficamente pelo espaço em brando deixado entre as partes de cada história. No conto O Monstro de Rodas, a reza de uma Ave-Maria é entremeada com a descrição de dados paralelos e o momento mais dramático do conto é acentuado pelo uso de parênteses para registrar ações simultâneas:

“O caixãozinho cor-de-rosa com listras prateadas (Dona Nunzia gritava) surgiu diante dos olhos assanhados da vizinhança reunida na calçada (a molecada pulava) nas mãos da Aída, da Josefina, da Margarida e da Linda”.

A construção das personagens em Brás, Bexiga e Barra Funda

A obra de Alcântara Machado deixa uma fresta na construção dos personagens em relação ao uso superficial da psicologia para caracterizá-los, limitando-se à criação de tipos que talvez pudessem esconder o lado preconceituoso do escritor paulista com relação aos imigrantes, fato reforçado pela falta de convivência com estes. Por outro lado, deve-se levar em consideração que a obra não se impõe como uma sátira ao modo de viver estrangeiro e que, portanto, não pretende aprofundar as personalidades destes personagens, mas sim demonstrar de que maneira eles influenciaram na constituição da sociedade paulistana desde aquela época e que é evidenciada até hoje.
Diante disso, a construção dos personagens nos contos de Alcântara Machado surge de maneira dinâmica durante o desenrolar das ações do enredo, de maneira muito simples, privando-se do uso exagerado de adjetivos, cedendo lugar aos dados concretos que vão caracterizar os personagens cinematograficamente:

“Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.
- Subito!
Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. (...)“. 


Em Gennarinho, o detalhe do nariz do escorrendo, denota a falta de polidez do personagem, em oposição aos elementos que compõem seu visual. Embora quisesse parecer ‘fino’, sua caracterização se torna rude, ironicamente:

“Gennarinho desceu na estação da Sorocabana com o nariz escorrendo. Todo chibante. De chapéu vermelho. Bengalinha na mão. (...) com a cabeça para fora do automóvel soltando cusparadas. Apertou o dedo no portão. Disse uma palavra feia. Subiu as escadas berrando.
- Tire o chapéu.
Tirou
- Diga boa noite
Disse.
- Beije a mão dos padrinhos.
Beijou.
- Limpe o nariz.
Limpou com o chapéu.”

Outro aspecto interessante é a descrição do vestuário utilizada para caracterizar os personagens. No caso da protagonista Carmela, as peças do vestuário vão marcar o lado escandaloso da nudez e a conseqüente vulgarização da personagem, ressaltada pela pretensa elegância na combinação de cores e permite ao leitor aproximar-se da personagem observando-a de dentro do conto, à medida que esta se contempla:

O vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde. Braços nus, colo nu, joelhos de fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva Marengo maduro para os lábios dos amadores. (...) Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado que reflete a boca reluzente de carmim primeiro, depois o nariz chumbeva, depois os fiapos de sobrancelha, por último as bolas de metal branco na ponta das orelhas descobertas.”

Em contraposição à descrição de Carmela está a apresentação de sua amiga Bianca, que ao mesmo tempo é um pouco desvalorizada por sua descrição física, faz o papel de boa amiga e intermediadora do romance entre Carmela o rapaz do Buick:

“Bianca por ser estrábica e feia é a sentinela da companheira.”[


Análise do conto Gaetaninho

Em linhas gerais, observamos na obra de Alcântara Machado, como traços mais característicos, o uso da pontuação como recurso de reprodução de traços rítmicos e melódicos da linguagem coloquial.  Outra característica fundamental é o uso de expressões italianas para marcar a influência da imigração e da miscigenação racial na constituição da sociedade paulistana.
Em Gaetaninho, conto de abertura de Brás, Bexiga e Barra Funda, há uma divisão do conto em cinco cenas, característica notadamente cinematográfica, dada pelo corte narrativo existente de uma cena para outra, introduzindo uma nova situação, em um tempo e espaço também novos. Essa superposição de cenas compõe o todo como uma colagem, como se o narrador estive com uma câmera fotografando cena por cena.
Um dos recursos utilizados pelo autor para ilustrar a ação do personagem é a linguagem radiofônica. Como se fosse um locutor esportivo, o narrador descreve:

“O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.
- Passa pro Beppino!
Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
- Vá dar tiro no inferno!
- Cala a boca, palestrino!
- Traga a bola!” 
           
O ambiente da trama é constituído por traços leves, demonstrando uma certa preocupação jornalística, mas que, no entanto, consegue identificar perfeitamente a condição sócio-econômica das personagens, como na passagem:

“Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.” 

Ainda neste trecho, notamos um certo valor social presente no desejo de Gaetaninho de andar de automóvel e ser admirado pelas pessoas, valor que talvez fosse associado como representação da elite, do status econômico.

“Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.
No bonde vinha o pai do Gaetaninho.
A gurizada assustada espalhou a noticia na noite.
- Sabe o Gaetaninho?
- Que é que tem?
- Amassou o bonde!
A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.
Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino”

O final do conto é surpreendente, tanto pela rapidez com que se dá a morte de Gaetaninho, quanto pela ambigüidade causada pela frase “Amassou o bonde”. Tomando-se o sentido do verbo amassar em português e sabendo que em italiano ammazzare significa matar, permite uma dupla interpretação do trecho final, já que não se sabe se foi o garoto que atropelou o bonde ou contrário, o que garante, para um final que parecia ser trágico, um caráter cômico.


POSTADO POR: Tais Matos

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