Brás, Bexiga e Barra Funda: O foco na sociedade italiana
Interessado pela vida na cidade, o universo
retratado por Alcântara Machado é o espaço urbano de São Paulo, em especial dos
bairros dos imigrantes italianos – Brás, Bexiga, Barra Funda e Mooca – embora
não faltem citações sobre os pontos considerados ‘nobres’ e ‘centrais’ da
cidade – como a Avenida Angélica, Higienópolis, Paulista, Rua Barão de
Itapetininga e Largo Santa Cecília. No conto Carmela,
a personagem passeia pela cidade e conduz o leitor ao reconhecimento de alguns
desses lugares com indicações dos nomes e, às vezes, até o número da casa ou da
loja.
Além do reconhecimento geográfico da
cidade um conjunto de aspectos humanos, morais, sociais, culturais e
lingüísticos é trazido ora por um narrador observador, que anota suas
impressões a uma certa distância, como fotógrafo de situações; ora por um
narrador onisciente, que penetra superficialmente no íntimo dos personagens que
formavam a comunidade ítalo-paulista. Totalmente identificado com a alma
popular, Alcântara Machado traz para sua obra Brás,
Bexiga e Barra Funda, não os emigrantes italianos ricos da avenida
Paulista, fazendeiros de café, senão os ítalo-paulistas dos arrebaldes pobres,
dos bairros operários, flagrados na simplicidade do seu cotidiano, na sua vida
íntima, na luta por sua integração social.
“Em Brás, Bexiga e Barra Funda, Alcântara Machado utiliza a
língua portuguesa tal como é praticada nos bairros ítalo-paulistas. Mas quando
se compara a língua macarrônica de um Juó-Bananère com a de Alcântara Machado
constata-se uma notável diferença entre a reprodução caricatural das
deformações fonéticas, no primeiro, e o recurso comedido às misturas de
vocabulário e erros de construção gramatical no segundo. [...] De fato,
Alcântara Machado não tem outro programa: ‘Construir tudo. Até a língua.
Principalmente a língua’.”.
Alcântara Machado dispôs-se a homenagear a italianidade
lingüística e comportamental que marcava o dinamismo da cidade em expansão,
recriando-a na linguagem certeira e ligeira das notícias de jornal. Embora
elogiasse as deformações da sintaxe e da prosódia utilizadas por Juó Bananère
(pseudônimo de Alexandre Marcondes Machado, um dos pioneiros da crônica da
imigração na imprensa paulistana), o autor não o imitava, mas integrava
vocábulos e estruturas frasais da língua italiana ao Português coloquial dos
personagens preservando a brasilidade do narrador:
“Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou
olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo. Decidiu-se.
- Ia dimenticando de dizer. O meu
filho fará o gerente da sociedade... Sob a minha direção, se capisce.
- Sei, sei... O seu filho?
- Si. O Adriano. O doutor... mi
pare... mi pare que conhece ele?”
Outra característica fundamental no livro é a constatação do
progresso metropolitano através da referência às máquinas, símbolos do
progresso na década de 20. Neste contexto são extremamente importantes os
veículos: bondes, coches, automóveis, identificados pelas marcas: Ford, Buick,
Lancia, Hudson. Esses elementos são os responsáveis pelo desencadeamento dos
conflitos nos contos Gaetaninho e O Monstro de Rodas,
também funcionam como elementos caracterizadores de poder econômico em A Sociedade e Carmela ou de espaços como em Lisetta e Corinthians (2) vs. Palestra (1).
No conto Tiro de
Guerra n. º 35, vários dados
se atrelam o bonde: é através dele que descobrimos a condição econômica do
cobrador (protagonista do conto), reconhecemos o espaço da cidade graças à
linha do bonde. Verifica-se também um dado concreto a respeito da cultura
popular quando a ausência do cobrador inspira a seção de fofocas amorosas da
revista A Cigarra. Em
outra passagem, o cobrador deixa o emprego na companhia cujo nome homenageava o
escritor italiano Gabrielle d’Annunzio para trabalhar numa similar que
homenageava Rui Barbosa, marca evidente do nacionalismo jacobino presente no
conto.
As descrições dos ambientes espaciais – tanto exteriores quanto
interiores em Brás, Bexiga e
Barra Funda são econômicas e
por vezes, raras. Em Amor e
Sangue, o narrador faz uma descrição do ambiente comparando-o ao personagem
de Nicolino; adianta registra também a imagem dos bondes e o acúmulo de pessoas
que ocupavam esses bondes:
“(...) não adiantava que o céu estivesse azul porque a alma de
Nicolino estava negra (...)”
O tempo na narrativa é cronológico e bastante breve. As ações se
passam em intervalos de horas, dias ou semanas em razão dos próprios enredos.
Assim em O Monstro das Rodas,o
relato não ultrapassa o período compreendido entre o velório e o enterro de uma
criança, em Corinthians (2)vs.
Palestra (1), o enredo se inicia em plena partida de futebol para
encerrar-se nas comemorações da torcida campeã. Já no conto Carmela, a protagonista é
convidada, em um fim de tarde, para um passeio de carro; no dia seguinte aceita
o convite, mas leva uma amiga junto, enquanto que no passeio do domingo já não
leva mais a acompanhante.
Durante a descrição do tempo das narrativas, o autor utiliza o recurso
da síntese para marcar a passagem do tempo e das ações. Esses saltos são
traduzidos graficamente pelo espaço em brando deixado entre as partes de cada
história. No conto O Monstro
de Rodas, a reza de uma Ave-Maria é entremeada com a descrição de dados
paralelos e o momento mais dramático do conto é acentuado pelo uso de
parênteses para registrar ações simultâneas:
“O caixãozinho cor-de-rosa com listras prateadas (Dona Nunzia
gritava) surgiu diante dos olhos assanhados da vizinhança reunida na calçada (a
molecada pulava) nas mãos da Aída, da Josefina, da Margarida e da Linda”.
A
construção das personagens em Brás,
Bexiga e Barra Funda
A obra de Alcântara Machado deixa uma fresta na construção dos
personagens em relação ao uso superficial da psicologia para caracterizá-los,
limitando-se à criação de tipos que talvez pudessem esconder o lado
preconceituoso do escritor paulista com relação aos imigrantes, fato reforçado
pela falta de convivência com estes. Por outro lado, deve-se levar em consideração
que a obra não se impõe como uma sátira ao modo de viver estrangeiro e que,
portanto, não pretende aprofundar as personalidades destes personagens, mas sim
demonstrar de que maneira eles influenciaram na constituição da sociedade
paulistana desde aquela época e que é evidenciada até hoje.
Diante disso, a construção dos personagens nos contos de Alcântara
Machado surge de maneira dinâmica durante o desenrolar das ações do enredo, de
maneira muito simples, privando-se do uso exagerado de adjetivos, cedendo lugar
aos dados concretos que vão caracterizar os personagens cinematograficamente:
“Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio
de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.
- Subito!
Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho.
Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo.
Recurso de campeão de futebol. (...)“.
Em Gennarinho, o detalhe do nariz do escorrendo,
denota a falta de polidez do personagem, em oposição aos elementos que compõem
seu visual. Embora quisesse parecer ‘fino’, sua caracterização se torna rude,
ironicamente:
“Gennarinho desceu na estação da Sorocabana com o nariz
escorrendo. Todo chibante. De chapéu vermelho. Bengalinha na mão. (...) com a
cabeça para fora do automóvel soltando cusparadas. Apertou o dedo no portão.
Disse uma palavra feia. Subiu as escadas berrando.
- Tire o chapéu.
Tirou
- Diga boa noite
Disse.
- Beije a mão dos padrinhos.
Beijou.
- Limpe o nariz.
Limpou com o chapéu.”
Outro aspecto interessante é a descrição do vestuário utilizada
para caracterizar os personagens. No caso da protagonista Carmela, as peças do
vestuário vão marcar o lado escandaloso da nudez e a conseqüente vulgarização
da personagem, ressaltada pela pretensa elegância na combinação de cores e
permite ao leitor aproximar-se da personagem observando-a de dentro do conto, à
medida que esta se contempla:
“O vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde.
Braços nus, colo nu, joelhos de fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva Marengo
maduro para os lábios dos amadores. (...) Abre a bolsa e espreita o espelhinho
quebrado que reflete a boca reluzente de carmim primeiro, depois o nariz
chumbeva, depois os fiapos de sobrancelha, por último as bolas de metal branco
na ponta das orelhas descobertas.”
Em contraposição à descrição de Carmela está a apresentação de sua
amiga Bianca, que ao mesmo tempo é um pouco desvalorizada por sua descrição
física, faz o papel de boa amiga e intermediadora do romance entre Carmela o
rapaz do Buick:
“Bianca por ser estrábica e feia é a sentinela da companheira.”[
Análise do conto Gaetaninho
Em linhas gerais, observamos na obra de
Alcântara Machado, como traços mais característicos, o uso da pontuação como
recurso de reprodução de traços rítmicos e melódicos da linguagem
coloquial. Outra
característica fundamental é o uso de expressões italianas para marcar a
influência da imigração e da miscigenação racial na constituição da sociedade
paulistana.
Em Gaetaninho,
conto de abertura de Brás,
Bexiga e Barra Funda, há uma divisão do conto em cinco cenas,
característica notadamente cinematográfica, dada pelo corte narrativo existente
de uma cena para outra, introduzindo uma nova situação, em um tempo e espaço
também novos. Essa superposição de cenas compõe o todo como uma colagem, como
se o narrador estive com uma câmera fotografando cena por cena.
Um dos recursos utilizados pelo autor para
ilustrar a ação do personagem é a linguagem radiofônica. Como se fosse um
locutor esportivo, o narrador descreve:
“O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com
o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas,
Gaetaninho ficou pronto para a defesa.
- Passa pro Beppino!
Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque.
Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
- Vá dar tiro no inferno!
- Cala a boca, palestrino!
- Traga a bola!”
O ambiente da trama é constituído por traços
leves, demonstrando uma certa preocupação jornalística, mas que, no entanto,
consegue identificar perfeitamente a condição sócio-econômica das personagens,
como na passagem:
“Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De
automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por
isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.”
Ainda neste trecho, notamos um certo valor social presente no
desejo de Gaetaninho de andar de automóvel e ser admirado pelas pessoas, valor
que talvez fosse associado como representação da elite, do status econômico.
“Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o
pegou. Pegou e matou.
No bonde vinha o pai do Gaetaninho.
A gurizada assustada espalhou a noticia na noite.
- Sabe o Gaetaninho?
- Que é que tem?
- Amassou o bonde!
A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do
Oriente e Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento.
Ia no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia
a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.
Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo
terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino”
O final do conto é surpreendente, tanto pela rapidez com que se dá
a morte de Gaetaninho, quanto pela ambigüidade causada pela frase “Amassou o
bonde”. Tomando-se o sentido do verbo amassar em português e sabendo que em italiano ammazzare significa matar, permite uma dupla
interpretação do trecho final, já que não se sabe se foi o garoto que atropelou
o bonde ou contrário, o que garante, para um final que parecia ser trágico, um
caráter cômico.
POSTADO POR: Tais Matos
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